Família Igreja Doméstica Testemunha da Esperança

10165731.normal

Num mundo marcado pela globalização e pelo materialismo, o Cardeal Dom Arlindo Furtado, Bispo de Santiago, vem-nos lembrar nas vésperas da celebração do Natal que o nosso Deus não é o Deus material e que o respeito pela vida, sua promoção e preservação é a mensagem fundamental do Natal.

Que mensagem natalícia deixa aos católicos cabo-verdianos?

 

A minha mensagem é de carácter humano, portanto seria dirigida a qualquer ser humano que procura viver feliz numa sociedade humanizada e humanizante. O Natal significa a aliança entre o humano e o divino. Na perspectiva cristã, aquilo que é humano foi levado ao nível máximo, que é o divino. Cristo, verbo de Deus, fez-se homem e uniu essas duas naturezas: a humana e a divina. Veio-nos transmitir também a missão ou a vocação de cada ser humano, que é a de chegar a um nível tal de perfeição, que venha participar pela graça de Deus, pelo dom de Deus também, na realidade divina. Isto é a revelação maior da dignidade da pessoa humana. Portanto, cada um de nós, cada ser humano é tão importante que Deus quer elevá-lo à dimensão divina, a participar na própria vida divina. Isto leva cada um ao máximo de autoestima, mas isto também traz para cada um a importância daquilo que o outro é, aquele que está ao meu lado – a dignidade humana que se estende a todos os seres humanos, aquilo que é a minha dignidade, é também a dignidade do outro. Por isso, o respeito pela vida, a promoção da vida, a preservação da vida, em todas as circunstâncias, é a mensagem fundamental que o Natal nos traz e diz respeito a todos nós: devemo-nos promover mutuamente, porque Deus nos quer promover à altíssima dignidade de perfeição máxima, participando na própria realidade divina. É a vocação de todo o ser o humano que o Natal nos veio lembrar para podermos melhorar cada vez mais o conceito que temos de nós mesmos e do outro e a qualidade de relacionamento que devemos cultivar uns para com os outros.

E a mensagem para o Ano Novo?

 

Nesta linha da valorização da pessoa humana, o tempo está ao serviço do ser humano. O tempo é vazio, o tempo passa. Nós é que damos conteúdo ao nosso tempo. Então o novo ano é sempre uma nova oportunidade para avaliarmos o ano transacto, em que é que nós crescemos, o que é que nós ganhamos, o que é que nós fomos capazes de construir? Sozinhos ou com os outros, em família. Mas também temos que avaliar em o quê que nós fracassamos, em o quê que não fomos tão performativos. Então, a partir daí, procurar dar um conteúdo melhorado da vida pessoal, da vida relacional e da vida profissional. Ou seja, o desenvolvimento das nossas capacidades a bem da comunidade. Portanto, o novo ano, na perspectiva cristã, é sempre uma oportunidade, um dom que Deus nos faz, para podermos crescer cada vez mais, cumprindo aquela missão que Cristo nos confiou a todos, “sede perfeitos, como é perfeito o vosso Pai do Céu”. Quer dizer, deve haver uma evolução a nível da perfeição na vida de cada ser humano a cada ano que passa. Cada ano é uma grande oportunidade; é um desafio, mas também é uma oportunidade. E é bom que tenhamos essa oportunidade para corrigirmos os erros do passado e porventura darmos início a novas dimensões do nosso crescimento e aperfeiçoamento e avançarmos naquilo que queremos preservar, sempre na linha evolutiva para sermos cada vez mais perfeitos. 

Corrigir erros do passado não implica não cometer outros.

As duas coisas. Há coisas em que posso errar num determinado momento que eu não gostaria de repetir, porque não interessa, não convém; antes pelo contrário, é prejudicial. Neste caso, significa corrigir mesmo, anular. Ou então, dar uma nova forma, dar uma nova orientação aos momentos da minha vida que não foram suficientemente bem aproveitados para introduzir elementos novos que me ajudam a crescer. Ou então, iniciar coisas novas porque o ser humano tem uma capacidade criativa extraordinária. É pena que muitas vezes não desenvolvemos essas capacidades, mas há sempre ocasião e devemos aproveitá-las para encetarmos novas iniciativas em ordem à melhor perfeição das pessoas, mas também para que possa contribuir para o bem comum da sociedade em que estou inserido. 

Capacidade humana sim, mas, na perspectiva cristã, sem a graça divina nada se alcança.

Sim, nós acreditamos que o homem não é plenamente autónomo. Na nossa perspectiva cristã, o homem depende do Criador, o homem depende dos outros e o homem depende também de si. Portanto, há uma interdependência mútua dos homens entre si, e dos homens em relação a Deus. É interessante que Deus também quer precisar de nós para alguma coisa. Deus também nos ama através de outrem. Portanto, a graça divina está sempre presente. Cristo disse numa passagem do Evangelho, “sem Mim, nada podeis fazer de bom”. Nós acreditamos, como cristãos, que Deus nos ajuda, nos deixa agir, nos promove e nos incita no sentido de fazermos alguma coisa boa, mas tudo isso não de uma forma escravizante, mas de uma forma colaborativa. Nós tomamos a iniciativa, tomamos decisões: Deus corrobora as coisas boas e juntamente com os outros podemos fazer coisas muito boas. Portanto, o homem é interdependente. Embora tenha a capacidade que Deus lhe deu, pela sua liberdade, pelo seu livre arbítrio, mas sobretudo pela sua liberdade, é incitado, é estimulado a escolher coisas boas. É que pelo livre arbítrio posso escolher coisas positivas ou negativas, coisas boas ou más, mas pela minha condição de ser livre, inteligente e racional eu posso, dentro dos parâmetros do livre arbítrio, decidir escolher coisas boas e renunciar a coisas más. Isto é expressão do autêntico uso da minha liberdade. É esse tipo de liberdade que Deus nos quer dar e quer-nos ajudar a promover sempre mais – fazer sempre escolhas pessoais, mas escolhas boas, para boas metas, com bons resultados para todos.

Platão diz que é melhor fazer o bem do que o mal e explica porquê. Qual é a explicação teológica? 

É que o ser humano é um ser bom. Aliás, em princípio, todo o ser é bom. O ser humano tem capacidade de fazer bem, e se faz o mal, ou pelo menos se omite o bem, é porque é limitado. Nós não somos deuses. Só Deus é perfeito. O ser humano tem capacidade limitada de fazer o bem. E tendo capacidade limitada de fazer o bem, então está sujeito também a não praticar o bem ao nível desejado ou mesmo, simplesmente, a deixar de fazer o bem. Portanto, a ausência do bem na acção do homem, na escolha do homem é que faz emergir a questão do mal. O mal é na verdade mais ausência do bem, porque quando nos empenhamos em fazer o bem, o mal fica completamente rejeitado, numa escolha autenticamente livre, porque fazemos a melhor opção possível. O homem devia estar sempre atento, porque Cristo dizia, “vigiai e orai”. Isto é, os que acreditam em Deus sabem que podem contar com a ajuda de Deus, porque as nossas forças, apesar de tudo, são limitadas.

Casos de pedofilia no seio da Igreja Católica têm feito manchetes em vários países. Não se pondo esta questão em Cabo Verde, quais são os problemas que mais chamam a atenção na comunidade cristã cabo-verdiana? 

O ser humano, pela sua limitação, está sujeito a todas fraquezas que qualquer homem pode ter. O cristão igualmente. O cristão é um ser humano, no entanto, teve a graça de encontrar Jesus Cristo, a quem procura seguir, mas a debilidade humana pode levá-lo ao fracasso em qualquer momento. Nós temos exemplos clássicos como Judas, que foi um dos apóstolos de Jesus Cristo: vendeu o mestre e acabou por se matar. Temos o Pedro, o chefe escolhido por Jesus Cristo que acabou por negar conhecê-lo, por cobardia, com medo da morte, numa primeira fase, mas veio a morrer como mártir mais tarde. De modo que, disse e continuo a dizer, que felizmente, em Cabo Verde, que eu saiba, não tivemos, casos de pedofilia, portanto, abuso sexual. Não quer dizer que isto esteja blindado. Portanto, “vigiai e orai” cada um, como disse há pouco. São Paulo dizia “quem julga estar de pé, cuidado para não cair”. Por isso, não está garantido totalmente que não possa vir a acontecer. Agora, os desafios na Igreja são muitos. O grande problema que temos é o problema da evangelização, porque temos em Cabo Verde muita gente que não conhece Jesus Cristo. Sobretudo a geração pós 25 de Abril [de 1974], pós- independência. Nós temos duas ou três gerações pós-independência que têm um conhecimento muito escasso, se não mesmo nulo, de Jesus Cristo. São pessoas muitas vezes com grande desenvolvimento intelectual, mas não têm nenhum crescimento espiri­tual, porque não tiveram oportunidade de ter uma compreensão daquilo que é a fé cristã para ajudar o ser humano a ser mais completo, também a nível espiritual. Acho que este é um dos principais desafios que temos: a missão de levar a mensagem de Jesus Cristo a essas gerações de pessoas que não a conheceram. Somos enviados a essas pessoas para lhes levar o conhecimento de Jesus Cristo como Salvador do mundo. É este o principal desafio. Como fazê-lo, é outro desafio. Uma coisa é anunciar Jesus, fazer chegar Jesus aos outros. Depois, como? O Papa João Paulo II já falava da necessidade da Igreja, hoje, ter novo ardor, novos métodos e novas linguagens para fazer chegar Jesus Cristo aos outros. Nós estamos na procura de pedir a graça do novo ardor – não fechar a mensagem no evangelho na sacristia e nos templos, mas levá-la para a sociedade em todos os sectores e em todos os âmbitos. Como fazê-lo? Com que linguagem e com que expressões? Esta é uma procura permanente que nos inquieta, porque é nosso dever fazê-lo. O Papa Francisco é claro neste aspecto: todo o baptizado deve assumir-se como cristão, como discípulo e seguidor de Jesus Cristo, mas ao mesmo tempo com a missão de levar Jesus Cristo aos outros: na família, no lugar de trabalho e em qualquer ambiente social que ele frequenta. Portanto, devemos formar pessoal para que dê não só testemunho com o seu evangelho – todos os discípulos, todos os baptizados – como com a sua vida honesta, sua vida fraterna, sua vida simples, sua vida construtiva, sua vida generosa e sua vida despojada, porque o nosso tesouro maior é Jesus Cristo. Nós precisamos de bens materiais para vivermos com dignidade e para ajudar os outros a viver com dignidade. O nosso Deus não é o bem material, o nosso Deus é outro, é o Deus de Jesus Cristo. Portanto, esse Deus que é pai de todos e nos quer a todos irmãos, amigos, companheiros e solidários uns com os outros. Jesus Cristo passou a sua vida a expor a sua mensagem: com a sua vida e com o seu anúncio. A Igreja, a mesma coisa – nós cristãos, discípulos de Jesus Cristo devemos dar o exemplo com o nosso testemunho de vida, mas também saber falar de Jesus Cristo aos outros e deixar que a liberdade pessoal e a acção do Espírito Santo aja no coração de cada um, para as pessoas fazerem uma avaliação e ver que, como dizia o Salmo, “saboreai e vede como o Senhor é bom”.