As celebrações destes dias introduzem-nos nesse mistério incómodo: o de um Messias humilhado, um Deus crucificado! A dificuldade de muitos de nós é que já conhecemos o filme. Celebrámos já tantas vezes esses eventos, que corremos o risco de que não deixem qualquer marca em nós. Só quem está disposto a deixar-se ferir pela ferida do Mestre pode ter acesso às suas chagas redentoras.
Quando as primeiras comunidades cristãs quiseram narrar os eventos da vida de Jesus de Nazaré, começaram por falar da sua paixão e morte. O significado desse mistério e o modo como o Mestre o viveu deixaram uma marca de fogo nas suas vidas. Assim nasceram os evangelhos.
Diante dos nossos olhos, desfilam os vários personagens que interagem no drama da paixão: Jesus, Judas, Pedro e os outros discípulos; as autoridades religiosas e políticas; a multidão; os soldados; as mulheres discípulas vindas da Galileia; Simão de Cirene (da Líbia!), improvisado companheiro de dor; José de Arimateia, discípulo na hora dramática; o militar pagão, que reconhece naquele justo o Filho de Deus...
Um drama em crescendo, onde as cenas se vão concatenando. Tudo começa na (última) Ceia. O Mestre, com seus discípulos, celebra antecipadamente o que vai suceder nas próximas horas: «Este é o meu corpo, entregue por vós, por todos» … «Este é o meu sangue, sangue da nova aliança, derramado por vós, por todos» ... No pão partido, no vinho doado, Jesus deixa-nos a síntese do que foi toda a sua vida e missão. «Fazei isto em memória de mim».
A partir daí, os cristãos celebram, na Eucaristia, a ‘memória’ da vida do seu Mestre doada até à morte, celebram o dom da sua ressurreição. E procuram viver, no dia a dia, ao jeito de Jesus: amar, servir, doar-se. Se não, o ritual que celebram será vazio.
A dificuldade em ligar os sinais e gestos do Mestre com a vida acompanhou os discípulos mais próximos de Jesus. Acompanha-nos sempre. (É mais fácil praticar um ritual que incarnar na vida os ensinamentos de Jesus! É mais fácil ser 'adoradores' do que 'seguidores' de Jesus!). Enquanto o Mestre fala da entrega da sua vida (sintetizada no pão e no vinho), os discípulos discutem entre si «quem deles devia ser considerado mais importante»!!!...
O evangelista fala disso para nos pôr um espelho à frente: no fundo, essa é a aspiração secreta de todos nós. Fomos batizados (=morremos e ressuscitamos com Cristo), mas o nosso ego leva muito tempo a ir morrendo… O nosso ego resiste. Resiste e trai. Trai o Mestre e trai o projeto de Criatura Nova que Jesus nos veio ensinar a ser. As traições de Judas e de Pedro (e dos demais discípulos, que abandonaram o Mestre) são as nossas traições. Na história desses discípulos (na nossa história!), misturam-se fortaleza e cobardia, generosidade e medo, negação e fuga... É a história dos nossos “sins” e “nãos” ... Oxalá deixemos o olhar do Mestre cruzar o nosso olhar, como cruzou o de Pedro. Um olhar não para condenar, mas para nos dizer: “Entendo a tua fragilidade; continuo a amar-te”. Esse olhar é o começo da redenção...
O conluio entre as autoridades religiosas e políticas determina o destino trágico de Jesus. Para as autoridades religiosas, Jesus é uma espinha na garganta. Não suportam mais a sua liberdade, a sua ousadia em questionar comportamentos incoerentes, a sua denúncia de terem feito da religião um
um jugo de normas e proibições que pesa sobre as pessoas, em vez de ser uma fonte de vida e de esperança.
Decididamente, ele “tem que” morrer!... As autoridades políticas-Herodes, Pilatos— aproveitam o embalo, para se desfazerem de um revolucionário incómodo e perigoso. A multidão, manipulada pelas autoridades, corrobora a sentença: «Seja crucificado!» ...
Impressionante é o comportamento do sentenciado! Discípulos, autoridades e multidão agem movidos pelo medo, o nervosismo, a cobardia, a histeria... Jesus não perde a serenidade. Sem perder a dignidade, responde aos adversários com respeito. Ao mesmo tempo, remete-os a si mesmos, para que encontrem dentro deles as fontes de conflito que projetam em Jesus. Só assim se podem curar e salvar.
Tinha-se preparado para essa prova suprema, num árduo combate espiritual: «Prostrando-se com a face por terra, assim rezou: “Pai, afasta de mim este cálice! Contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua”. Cheio de angústia, pôs-se a orar mais instantemente, e o suor tornou-se-lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra».
A cruz incomoda. Bem no fundo de nós, gostaríamos de ver realizadas as palavras dos que nessa hora dolorosa o desafiam: «Não és tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e também a nós!». As nossas aspirações encaixam melhor na imagem de um Deus potente. Não queremos um Messias perdedor. Podemos até comover-nos enquanto celebramos a morte de Jesus. Mas, na vida concreta, ansiamos por um Deus forte, que não se deixe humilhar, derrotar. Um Deus que confirme a nossa escondida ânsia de poder.
Mas o Mestre não se salva a si mesmo; não “se safa” a si mesmo! Prefere ser impotente, vulnerável. Para estar com os vulneráveis, com os que não podem descer da cruz. Faz-se um de nós, solidário connosco, até às últimas consequências. Como diz Paulo na 2ª leitura: «Não se valeu da sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se. Assumiu a condição de servo, fez-se igual ao homem… humilhou-se ainda mais, obedeceu até à morte...».
Jesus não planeou a própria vida como um bem a usufruir egoisticamente, segundo os próprios interesses. Teve um só jeito de viver: doar-se ao serviço de todos, renunciando a toda forma de poder. Este faz-nos, quase sempre, prisioneiros de nós mesmos e manipuladores dos outros para os nossos fins.
De que lado estamos hoje, como cristãos? Que imagem de Igreja cultivamos? Uma Igreja potente, com honrarias e reconhecimento público, que se dá bem com os poderosos? Uma Igreja “prudente” no trato com quem governa, para não perder algumas benesses?
Ou somos uma Igreja que se coloca ao lado dos crucificados, dos excluídos e injustiçados, dos que nada contam na sociedade? Uma Igreja assim deve estar disposta a correr riscos, como correu o seu Mestre, que se despojou da ‘grandeza’ divina, para ser plenamente solidário com a nossa humanidade, ferida.
(João Pedro Fernandes, CSsR)